O mundo discute intensamente a regulação das plataformas digitais. Apesar de uma relutância duradoura em abordar publicamente a questão da manipulação de informações, grandes plataformas, sob pressão de governos e da sociedade civil, têm sido cada vez mais compelidas a sair da posição de mediadoras – supostamente neutras, diante de seu “status não editorial” e obrigação de garantir a liberdade de expressão e a liberdade comercial – para a de formadoras de opinião e, logo, responsáveis pelos conteúdos disseminados.
Implantes Cerebrais e os Desafios dos Neurodireitos no Século XXI
No mundo digital de hoje, nada do que se faz ou diz pode ser considerado seguramente privado. As paredes não só têm ouvidos, mas também estão conectadas à internet. Existe apenas um espaço no mundo que é verdadeiramente privado: a mente. Mas até isso não será verdade por muito tempo.
Em 29 de janeiro de 2024 o primeiro paciente humano recebeu o implante cerebral da Neuralink, empresa de neuro tecnologia fundada por Elon Musk. O primeiro produto da Companhia é denominado ‘Telepatia’ e promete mudar a forma como os humanos interagem com a tecnologia. Ele permitirá que os usuários controlem seus telefones, computadores e quase todos os dispositivos através do pensamento. Embora este seja apenas o começo, a implantação bem-sucedida representa um marco significativo para a história da humanidade, os primeiros passos para a fusão da consciência humana com a inteligência artificial.
Nas últimas duas décadas, o progresso tecnológico no campo da neurociência e da neuroengenharia, em conjunto com a inovação neurotecnológica também em setores extra clínicos (por exemplo, o judiciário, o militar e a indústria de consumo), resultou num crescente interesse público e na reflexão acadêmica sobre as implicações éticas e sociais das tecnologias que se intercomunicam com o cérebro humano.
Neurotecnologia é o termo genérico normalmente usado para descrever este espectro amplo e heterogêneo de métodos, sistemas e instrumentos que estabelecem um caminho de conexão direta com o cérebro humano através do qual a atividade neuronal pode ser registrada e/ou influenciada. Como resultado deste crescente interesse acadêmico e público, surgiram disciplinas novas: neuroética e neurodireito. A neuroética é definida como “o exame do que é certo e errado, bom e ruim no tratamento, perfeição ou invasão indesejada e manipulação preocupante do cérebro humano” ( Safire, 2002 ).
O termo neurodireito abrange toda a área de interseção entre a neurociência e o direito (Shen, 2016) e olha para os desafios ético-jurídicos na neurociência e na neurotecnologia em termos de princípios normativos de alto nível, como direitos, prerrogativas, e deveres associados.
Os neurodireitos podem ser definidos como os princípios éticos, legais, sociais ou naturais de liberdade ou direito relacionados ao domínio cerebral e mental de uma pessoa; isto é, as regras normativas fundamentais para a proteção e preservação do cérebro e da mente humanos.
Em 2021 a Organização dos Estados Americanos (OEA) – instituição que congrega várias estruturas de proteção aos direitos humanos – publicou a “Declaração Interamericana de Neurociência, Neurotecnologia e Direitos Humanos”, cujo Princípio 8 estabelece:
Os Estados devem garantir que todos os intervenientes estatais e não estatais envolvidos no desenvolvimento, utilização e/ou comercialização de neurotecnologias garantam a transparência dos avanços neurotecnológicos. Isto abrange não só a forma como as neurotecnologias são estudadas, desenvolvidas e aplicadas, e a forma como funcionam, mas também a sua compatibilidade com os direitos humanos e a responsabilização dos intervenientes pelo processamento dos dados neurais que possuem .
No mesmo ano, o Senado do Chile aprovou um projeto de lei, o primeiro do género no mundo, para alterar a constituição para proteger os “neurodireitos” ou direitos do cérebro. Isto fez do Chile o primeiro país do mundo a consagrar os neurodireitos na sua constituição.
O imparável desenvolvimento tecnológico demanda uma proteção jurídica da liberdade de pensamento e integridade mental da humanidade. É direito fundamental de cada pessoa pensar de forma independente, de usar todo o espectro da sua mente e de ter autonomia sobre a química do seu próprio cérebro. A liberdade cognitiva diz respeito à ética e à legalidade de salvaguardar os próprios processos de pensamento e, por necessidade, os estados eletroquímicos do cérebro.
A privacidade também deve ser incluída como objeto essencial de proteção no âmbito do direito à integridade mental e consiste no domínio do indivíduo sobre seus estados mentais e seus dados cerebrais de modo que, sem o consentimento livre e informado, ninguém possa ler, difundir ou alterar tais estados e dados para condicionar de alguma forma o indivíduo.
Não há dúvida de que tamanho poder – conexão entre tecnologia, IA e mente humana – tem potencial devastador e capacidade para mudar completamente o rumo da história no planeta. Por isso fornecer uma proteção normativa específica contra potenciais riscos e danos decorrentes de intervenções possibilitadas pela neurotecnologia, envolvendo a alteração não autorizada da computação neural de uma pessoa, é medida de extrema urgência.